Órgão colegiado com maioria governista na EBC impõe censura à Ouvidoria | Artigo de Joseti M.

Órgão colegiado com maioria governista na EBC impõe censura à Ouvidoria | Artigo de Joseti M.

A notícia foi divulgada de forma protocolar pela própria Ouvidoria da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), no relatório bimestral, referente aos meses de março e abril de 2021. O Conselho de Administração (Consad), órgão colegiado formado por maioria de membros do governo, decidiu que as análises críticas aos conteúdos publicados pelos veículos geridos pela EBC, trabalho previsto em lei, não sejam mais publicadas nos relatórios bimestrais da Ouvidoria.

Estes relatórios, depois de encaminhados à diretoria e ao Conselho de Administração, são tornados públicos na página da Ouvidoria no portal da EBC. Na prática, a deliberação do Consad significa esconder do público os problemas observados, principalmente os que apontam uma cobertura jornalística parcial, sempre favorável ao governo e ao presidente Jair Bolsonaro.

O trabalho de análise feito pela Ouvidoria tem sido alvo de críticas internas justamente por fazer vista grossa a problemas de conteúdo que desfiguram o que a lei estabelece como os princípios da comunicação pública – aliás, não apenas da comunicação pública, mas, em muitos casos, também os princípios que regem o jornalismo.

No entanto, mesmo com uma certa leniência, a Ouvidoria ainda aponta falhas difíceis de não se notar, como a falta de cobertura do colapso na saúde em Manaus no dia 14 de janeiro. O assunto foi abordado pela beirada, escorado em uma reclamação de leitor e na resposta burocrática enviada pela Agência BrasilA grave “falha” jornalística não teve análise da Ouvidoria, mas o fato pelo menos foi relatado.

A seção de análise, nos relatórios, em geral se atém a problemas reclamados pelo público, como a histórica deficiência de sinal da TV Brasil, problemas de funcionamento no aplicativo TV Brasil Play, mudanças na grade da programação, variações no volume de áudio nas rádios, e a irritação com as respostas padronizadas que recebem dos setores que respondem às demandas.

Desta forma, tratam o acessório como essencial e contornam a tarefa de análise de conteúdos, que é uma parte fundamental do trabalho de Ouvidoria. As análises deveriam contribuir para o aprimoramento do serviço prestado, servindo de parâmetro de qualidade para os profissionais nos diversos veículos.

Além disso, deveriam colaborar para a constituição de um discurso e atuação próprios, já que no Brasil ainda não se reconhece a comunicação pública como um serviço essencial como em tantos outros países avançados do mundo.

Infelizmente, não se pode defender um direito que não se conhece e não se sabe que se tem. Esta é também uma das responsabilidades da Ouvidoria – informar o público que a empresa pública de comunicação não é do governo, mas dos cidadãos e cidadãs e que informação de qualidade é um direito fundamental. E isso está na Lei!

lei 11.652/2008 de criação da EBC, no seu Art.20, especifica a função da Ouvidoria e afirma seu dever e prerrogativa de fazer a crítica dos conteúdos dos veículos geridos pela empresa:

A EBC contará com 1 (uma) Ouvidoria, dirigida por 1 (um) Ouvidor, a quem compete exercer a crítica interna da programação por ela produzida ou veiculada, com respeito à observância dos princípios e objetivos dos serviços de radiodifusão pública, bem como examinar e opinar sobre as queixas e reclamações de telespectadores e rádio-ouvintes referentes à programação”.

O Consad integra a administração da EBC ao lado da Diretoria Executiva, e tem natureza colegiada, composto por nove membros: um representante eleito pelos empregados, o presidente da empresa, indicado pelo governo; cinco indicados por diferentes ministérios e dois membros indicados pelo “ministério supervisor”, que até junho do ano passado era a Secretaria de Governo da Presidência da República.

Com a criação do Ministério das Comunicações, a EBC passou a integrar esse ministério, que também deverá ter representantes no colegiado.

Com raras e honrosas exceções, não estão fazendo comunicação pública, mas proselitismo político e propaganda dos interesses do inquilino do Palácio do Planalto.”

Um dos itens do Regimento Interno do Consad, no capítulo II, Art 2º, estabelece que sua missão é zelar “pela transparência, eficácia e legalidade da gestão”. Mas não é o que se vê, com esta deliberação que desidrata o trabalho da Ouvidoria, único instrumento que restou de participação do público na gestão da empresa, depois que o governo de Michel Temer extinguiu o Conselho Curador.

A inadequada e mal arranjada Deliberação Consad/EBC 12/2021, estampada no relatório da Ouvidoria, elenca todas as leis e documentos consultados para justificar a decisão injustificável, entre eles um “aconselhamento” da Consultoria Jurídica da empresa.

Mesmo esquivando-se do essencial, o jurídico indica as brechas na lei e na Norma da Ouvidoria para que o Consad faça o que já havia decidido fazer, ou seja, esconder do usuário do serviço prestado pela empresa de comunicação pública o desvio de finalidade que se vem impondo aos veículos geridos por ela.

Com raras e honrosas exceções, não estão fazendo comunicação pública, mas proselitismo político e propaganda dos interesses do inquilino do Palácio do Planalto.”

Na citação de documentos consultados para dar ares de legitimidade à decisão estapafúrdia, passam ao largo da Lei de Acesso à Informação, da qual, ironicamente, a Ouvidoria da EBC sempre foi a Autoridade de Monitoramento na empresa. Vejamos o que diz a LAI:

Art. 3º: Os procedimentos previstos nesta Lei destinam-se a assegurar o direito fundamental de acesso à informação e devem ser executados em conformidade com os princípios básicos da administração pública e com as seguintes diretrizes:

 I – observância da publicidade como preceito geral e do sigilo como exceção;

II – divulgação de informações de interesse público, independentemente de solicitações;

III – utilização de meios de comunicação viabilizados pela tecnologia da informação;

IV – fomento ao desenvolvimento da cultura de transparência na administração pública;

V – desenvolvimento do controle social da administração pública.

Art. 6º Cabe aos órgãos e entidades do poder público, observadas as normas e procedimentos específicos aplicáveis, assegurar a:

I – gestão transparente da informação, propiciando amplo acesso a ela e sua divulgação;

Não que a atual gestão da Ouvidoria esteja se esforçando para cumprir adequadamente sua missão, apontando as inaceitáveis inadequações que se têm observado na programação, como, por exemplo, a cobertura da CPI da Pandemia pela TV Brasil realçando apenas os aspectos de defesa do governo. Mas não se pode jogar fora a criança com a água suja da bacia.

A Ouvidoria é o mecanismo de defesa dos interesses públicos em um serviço que diz respeito à construção da cidadania, na forma de comunicação e informação de qualidade.

Uma empresa de comunicação pública está a salvo das negociações e interesses comerciais da iniciativa privada, mas deve, mais que tudo, estar protegida de interesses políticos-partidários-ideológicos de qualquer natureza, principalmente os que, como agora, avançam para a destruição de marcos civilizatórios e conquistas de direitos da sociedade civil tão duramente alcançados.”

A Ouvidoria é – ou pelo menos deveria ser – a garantidora desta salvaguarda, porque é a defensora natural dos direitos dos cidadãos e cidadãs dentro de qualquer órgão público.

E no caso da EBC essa missão é ainda mais grave, porque a informação é um bem essencial, base para os demais direitos, possibilitando que a sociedade se reconheça e seja reconhecida; para que tenha autonomia e caminhe por suas próprias pernas e decisão, livre de cabrestos e artifícios comerciais ou ideológicos de qualquer natureza.

Amordaçar a Ouvidoria é querer dissimular o óbvio. Rebaixar a comunicação pública a uma peça publicitária que camufla a realidade dos fatos e faz propaganda de governantes é crime e precisa ser denunciado!

 

 

 

Joseti Marques é jornalista e ex-Ouvidora
da Empresa Brasil de Comunicação (EBC).

Imagem principal: Marcello Casal/Agência Brasil

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